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Queridos irmaos o chat esta aberto a todos ...aqueles que sentirem necessidade pode la fazer sua prece individual...usem e fiquem a vontade pq a espritualidade presente ira acolher depende unicamente da fé de cada um.....
Muita paz e luz a todos

terça-feira, 11 de março de 2014

caridade e amor II


2. Um pouco de filosofia

Existe uma distinção filosófica entre dois conceitos que pode ser útil na análise da questão do amor e da caridade. Trata-se da distinção entre paixão e ação. Qualquer estudo do tema deve, ainda hoje, fazer menção ao livro As Paixões da Alma, de René Descartes, publicado em 1649. Para os espíritas, outra referência indispensável é a seção "Paixões" do último capítulo da terceira parte de O Livro dos Espíritos, intitulado "Da perfeição moral". Em trabalho anterior, publicado no Reformador de abril de 1998, fizemos um exame do interessante assunto. Não podendo, evidentemente, reproduzir aqui os detalhes desse texto, recomendamos ao leitor que o procure ler, para uma compreensão mais completa do que se vai seguir. (O artigo encontra-se disponível no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

De forma muito simplificada, lembraríamos apenas que o conceito filosófico de paixão não deve ser confundido com a noção hoje popular, associada a certos sentimentos desgovernados, em geral envolvendo nosso relacionamento afetivo com alguém ou com alguma coisa. Tanto Descartes como Kardec deixam claro que paixão é qualquer tipo de experiência que se faz sentir de nossa alma de formapassiva. (As palavras ‘paixão' e ‘passividade' têm a mesma origem.) Paixões, pois, se contrapõem a ações. Ações pressupõem a intervenção da vontade; paixões são algo que ocorre em nós involuntariamente, quando estamos diante de certos estímulos, externos ou internos à própria alma. Assim, por exemplo, as paixões que Descartes considera "básicas" são o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a admiração e o desejo; as outras resultariam de sua combinação ou modificação.

Descartes procurou explicar a ocorrência das paixões em termos de certos processos psico-fisiológicos complexos, que não vem ao caso discutir aqui. É suficiente notar que hoje em dia talvez possamos descrever esses processos como uma espécie de automatismo. Vemos uma cena cruel e automaticamente sentimos indignação. Ouvimos alguém gemer e sentimos pena. Lemos uma notícia boa e ficamos alegres. Pensamos na traição de um amigo e nos entristecemos. Refletindo sobre esses exemplos, percebemos que de fato os sentimentos descritos se apoderam de nós sem que o desejemos e, além disso, sem que possamos imediatamente alterá-los por nossa vontade. Descartes apontou e explicou essa impossibilidade do controle direto das paixões.

Quando, por meio de uma análise racional, estimamos que uma determinada paixão é prejudicial a nós ou a outros, coloca-se a questão de como então podemos domá-la. Uma medida que seguramente está ao nosso alcance é impedir que a paixão repercuta em nossas ações. Quando sentimos raiva, por exemplo, podemos sempre nos abster de agir vingativamente. Mas o sentimento em si permanece. O famoso filósofo francês indicou o que pode ser feito mesmo nesse nível íntimo. Em síntese, propôs que por uma série de artifícios podemos indiretamente controlar a paixão que incomoda. Remetemos, mais uma vez, o leitor ao referido artigo para o prosseguimento desse vasto assunto. O que já vimos basta para podermos entender um pouco melhor a distinção entre amor e caridade.

Pois bem: parece-nos claro que, não obstante intimamente associados, os conceitos de amor e de caridade distinguem-se justamente por serem, respectivamente, paixão e ação. O amor é o sentimento; brota em nós espontaneamente. A caridade é a mobilização de nossa vontade por esse sentimento, para que algo façamos em benefício de alguém ou de alguma coisa. Essa interpretação está inteiramente de acordo com a definição do dicionarista citada no início deste texto. "Caridade: ... o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem ...".

O amor muitas vezes é entendido como algo que pode esgotar-se em si mesmo e não desencadear ações caritativas. Seria o amor "contemplativo", "meditativo", tão freqüentemente associado a certas abordagens religiosas, especialmente as de origem oriental. Jesus propôs-nos algo diferente: o amor-em-ação, a caridade. Embora a superação do ódio e das mágoas seja algo fundamental em nossa evolução, se nos restringirmos ao simples querer-bem nosso sentimento estará incompleto. É justamente a sua associação à prática do bem que o completa e consolida. Nesse sentido é que a caridade talvez seja o traço diferenciador mais importante da doutrina cristã, conforme sugerimos na seção precedente.

Outro ponto importante que a análise filosófica esboçada acima esclarece é que, como o amor é uma paixão (no sentido filosófico do termo), não temos controle direto sobre o seu surgimento. É inútil, por exemplo, diante de um agressor simplesmente querer amá-lo. A experiência própria confirma isso, aliás. Talvez seja essa uma das razões pelas quais a Humanidade tem demorado tanto para seguir as recomendações seculares de seus líderes espirituais, unânimes em pedir-nos que nos amemos uns aos outros.

Com a noção de caridade, Jesus trouxe um elemento novo para resolvermos o problema da conquista do amor. Sendo uma ação, a caridade está sempre ao nosso alcance direto. Depende só de querermos. Se aprofundarmos esse tópico, talvez consigamos situar a caridade dentro da noção cartesiana de um processo indireto de controle de paixões. Na ausência do amor, ou na presença de um amor incipiente, ainda assim podemos ser caridosos, se reconhecermos racionalmente que é isso que nos convém. A caridade acaba, depois, desencadeando ou reavivando o amor. O nosso automatismo se redireciona. Passamos a sentir amor, na medida em que fazemos o bem.

Recorrendo a uma comparação um tanto tosca, seria como alguém que tem as mãos frias, que o mecanismo fisiológico não consegue reaquecer, e que, percebendo a inconveniência da situação, lança mão de um "artifício": aproxima as mãos do fogo. Embora o calor assim gerado seja algo externo, ele age sobre os vasos sangüíneos, dilatando-os. A circulação se normaliza, e a partir daí as mãos seguem aquecidas pela atividade do próprio corpo. A caridade inflama o amor. Uma vez inflamado, o amor realimenta a própria caridade.

Ademais, a caridade é "contagiante". Que poder de educação e despertamento têm os exemplos de amor ativo em favor do próximo! Reparemos como nas campanhas públicas para socorrer vítimas de calamidades, por exemplo, mesmo pessoas normalmente acomodadas em seu próprio "canto" mobilizam-se, entram na luta, animam-se.

Nós aqui da Terra, que ainda temos o amor integral e universal um tanto distante, precisamos não apenas dos incentivos daqueles que estão à nossa frente na escala do amor, mas também de esforços conscientes para fazer o bem. É um indispensável período de transição para a caridade pura e desinteressada. Na referida seção sobre as paixões, em O Livro dos Espíritos, enfatiza-se a importância dos esforços para que as más paixões sejam controladas. Na seção "As virtudes e os vícios", que abre o mesmo capítulo, explica-se que as virtudes são algo que conquistamos a partir de nossa conscientização. E Emmanuel salienta, numa interessante resposta dada à questão 254 de O Consolador, que "a disciplina antecede a espontaneidade".

Antes de passarmos à próxima seção, queríamos, conforme prometemos, retomar um versículo da primeira epístola de Paulo aos tessalonicenses, o versículo 9 do capítulo 4. Ele apresenta a peculiaridade de estar traduzido praticamente igual em todas as edições citadas do Novo Testamento, exceto duas, a mais antiga dos Gideões e a edição católica. Significativamente, é desse mesmo modo diferente que está no mote escolhido por Emmanuel para o capítulo 138 do livro Fonte Viva. Eis o versículo:

Quanto, porém, à caridade fraternal, não necessitais que vos escreva, visto que vós

mesmos estais instruídos por Deus que vos ameis uns aos outros.

Nas demais edições a palavra ‘caridade' é substituída por ‘amor'. Sem ter como resolver a divergência em bases puramente textuais, vejamos o que o contexto nos indica aqui, com o auxílio da análise filosófica que esboçamos.

Paulo usava suas cartas para educar, aconselhar e alertar os irmãos das comunidades cristãs nascentes. O mandamento maior do amor já era conhecido, aliás antes mesmo do ensino de Jesus. Ele é a essência da lei divina, independentemente da época ou da religião. É nesse sentido que Paulo diz que os cristãos da Tessalônica já estavam "instruídos por Deus" acerca da necessidade de se amarem. Traduzindo-se a quarta palavra como amor, o versículo faz sentido, é claro. Já estando instruídos para se amarem, Paulo não precisava recomendar-lhes de novo para que se amassem.

Mas será que Paulo iria gastar papiro para escrever algo tão trivial? Já se colocarmos caridade o versículo passa a encerrar uma mensagem interessante e tipicamente cristã. Recomendar a caridade para quem sabe que deve amar seria em princípio dispensável porque a caridade decorre do amor, é uma de suas conseqüências. Paulo estaria, então, explicitando essa relação de dependência. Seria um lembrete para que a dimensão ativa do amor não fosse esquecida. O amor acerca do qual Deus nos instruiu, por seus muitos emissários, não pode ser o amor inativo. Devidamente compreendido e vivido, esse amor devemanifestar-se na ajuda fraterna - a caridade.

Podemos, talvez, esquematizar as inter-relações entre amor e caridade por meio do seguinte diagrama: