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Queridos irmaos o chat esta aberto a todos ...aqueles que sentirem necessidade pode la fazer sua prece individual...usem e fiquem a vontade pq a espritualidade presente ira acolher depende unicamente da fé de cada um.....
Muita paz e luz a todos

terça-feira, 11 de março de 2014

As paixões: Uma breve análise filosófica e espírita parte II

3. O controle das paixões

Chegamos agora a um ponto saliente do estudo das paixões, enfatizado na seção de O Livro dos Espíritos que estamos analisando, e que recebeu também grande atenção da parte de Descartes: a questão de seu controle, domínio ou governo. Dada a própria conceituação de paixão, ou seja, de algo que acontece involuntariamente em nossa alma, uma impressão preliminar poderia ser a de que as paixões escapam, por sua própria natureza, a toda possibilidade de controle voluntário. No entanto, o assunto é complexo, e exige exame mais detido. Comecemos transcrevendo o item 909 de O Livro dos Espíritos:
909. Poderia sempre o homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?
"Sim, e, por vezes, fazendo esforços pequenos. O que lhe falta é a vontade. Ah! quão poucos dentre vós fazem esforços!"
Embora não se fale aqui explicitamente em paixões, está claro a partir do contexto que as referidas "más inclinações" estão associadas ao desvirtuamento dos sentimentos naturais que estão na origem das paixões. Temos, por exemplo, uma tendência que parece natural, maior ou menor conforme a pessoa, de sentir orgulho quando nos elogiam, mágoa quando nos ofendem, inveja quando vemos alguém possuir aquilo que queríamos para nós próprios. Nos itens 910 e 911 a referência às paixões se torna explícita. No primeiro deles assevera-se que os bons Espíritos podem nos auxiliar a vencer as más paixões, pois que "é essa a missão deles." O segundo vai agora transcrito em sua íntegra:
911. Não haverá paixões tão vivas e irresistíveis, que a vontade seja impotente para dominá-las?
"Há muitas pessoas que dizem: Quero, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem, porém muito satisfeitas ficam que não seja como "querem". Quando o homem crê que não pode vencer as suas paixões, é que seu Espírito se compraz nelas, em conseqüência de sua inferioridade. Compreende a sua natureza espiritual aquele que as procura reprimir. Vencê-las é, para ele, uma vitória do Espírito sobre a matéria."
Repare-se que nessas passagens o conceito de paixão está sendo restringido ao seu uso mais ordinário, de algo com conotação negativa, que requer controle ou superação. Isso não implica que devamos dissociá-lo de sua significação filosófica original, esboçada na seção precedente. Tudo o que nela foi visto aplica-se também aqui, onde se trata de paixões particulares, aquelas que redundam em um mal qualquer para algo ou alguém.
Feitas essas ressalvas, retomemos o cerne desses três quesitos de O Livro dos Espíritos. Neles se afirma resolutamente que as paixões negativas podem ser controladas pela vontade. Como fica então a conclusão a que havíamos chegado pela análise filosófica de que as paixões são aparentemente incontroláveis? Veremos agora que esse é um conflito apenas aparente, que se dissolve diante de um exame mais acurado. Descartes empreendeu ele próprio esse exame, e podemos aproveitá-lo quase que integralmente aqui, com as necessárias simplificações. Esses estudos de grande beleza e profundidade encontram-se principalmente nos parágrafos 44 a 50, e 137 a 148 de As Paixões da Alma.
Iniciemos pelo parágrafo 46. Quando sofremos uma paixão qualquer, embora seu afloramento seja espontâneo, involuntário, dado o automatismo que opera em nós, podemos, por nossa vontade,
não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la; se o medo incita as pernas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante. [4]
Eis, portanto, uma constatação simples, porém altamente relevante para o controle das paixões: sustar os seus efeitos maléficos sobre as coisas e pessoas. Isso está em nosso poder, desde que tenhamos vontade firme e discernimento moral para reconhecer quais os efeitos bons e quais os ruins. (Abordaremos o assunto do senso moral na próxima seção.)
No entanto, ainda que exercida eficazmente essa limitação das manifestações externas das más paixões resta o fato de que elas continuam existindo enquanto fenômenos de nosso mundo íntimo, ou seja, os sentimentos continuam presentes em nossa alma, prejudicando-nos a paz interior. O que fazer agora?
Descartes enfatiza que a vontade não tem o poder de excitar ou suprimir diretamente as paixões (§ 45). Um pouco de reflexão leva-nos a concordar com ele. Bastará ao orgulhoso simplesmente querer ser humilde? De alguma coisa adiantará ao que está triste dizer para si próprio: 'Ficarei alegre agora'? Vencerá alguém a mágoa simplesmente desejando alijar-se dela? Parece que não; falta algo além da vontade.
O que seria esse algo não se explicita na seção em exame de O Livro dos Espíritos. A resposta está implícita no conjunto da obra e suas complementações. Um dos méritos do texto de Descartes é justamente o de enfocar o problema de forma quase explícita. (Dissemos quase porque o que exporemos a seguir é fruto de uma elaboração de várias observações e asserções de Descartes.)
O filósofo francês afirma, notemos bem, que não temos controle direto sobre as paixões. Isso não significa que não possamos controlá-las indiretamente, mediante certos artifícios. Consideremos uma útil analogia de que Descartes lança mão no parágrafo 44. Constitui fato patente que há certos movimentos corporais sobre os quais a vontade é incapaz de atuar diretamente, como a abertura ou fechamento das pupilas: ninguém as abre ou fecha voluntariamente. No entanto, podemos facilmente fazê-las se fechar ou abrir indiretamente, voltando nossos olhos para uma região mais clara ou outra mais escura. Sobre os movimentos dos olhos, pálpebras e face temos pleno controle e, explorando o automatismo fisiológico, logramos controlar a abertura das pupilas de forma indireta. As paixões, diz Descartes (§ 45), podem, de forma análoga, ser excitadas ou suprimidas indiretamente
pela representação das coisas que costumam estar unidas às paixões que queremos ter, e que são contrárias às que queremos rejeitar. Assim, para excitarmos em nós a coragem e suprimirmos o medo, não basta ter a vontade de fazê-lo, mas é preciso aplicar-nos a considerar as razões, os objetos ou os exemplos que persuadem de que o perigo não é grande; de que há sempre mais segurança na defesa do que na fuga; de que teremos a glória e a alegria de havermos vencido, ao passo que não poderemos esperar da fuga senão o pesar e a vergonha de termos fugido, e coisas semelhantes.
Como no caso da abertura das pupilas, podemos estudar o automatismo das paixões e colocá-lo a nosso serviço. O exemplo dado por Descartes refere-se à paixão do medo. Tentemos ver como seria no caso da mágoa. Diante de uma ofensa, pode acontecer de ficarmos magoados, quer queiramos ou não. Reconhecendo porém os malefícios desse sentimento, aplicamo-nos em combatê-lo. Para tanto, temos que nos "representar" coisas que sabemos estar unidas ao perdão e que são contrárias à mágoa. Podemos, por exemplo, ponderar que o ofensor é uma pessoa infeliz; que não teve ainda a glória de ascender a um patamar comportamental melhor; que pode ter agido sob o peso de problemas que desconhecemos; que pode não ter encontrado na infância pais devotados e bons que lhe ensinassem a virtude por palavras e atos; que ele colherá frutos amargos de sua ação; que, de nosso lado, havemos de possuir em nosso passado fatores que determinaram a necessidade ou conveniência de enfrentarmos semelhante provação. Examinando as obras espíritas voltadas à orientação moral, é fácil encontrar muitas considerações desse teor. Os bons autores espíritas sabem que a melhoria moral da criatura não é uma questão de prescrições, de proibições, mas de esclarecimento e de substituição de hábitos.
Falamos em hábitos e isso nos conduz a outro tópico da análise cartesiana. Quando recorremos à noção de automatismo para explicar o mecanismo das paixões devemos esclarecer mais sua natureza, se é permanente e inalterável ou não. Pois bem: Descartes sustentava que esse automatismo das paixões (embora, repitamos, não tenha usado essa expressão) podia ser alterado. Essa possibilidade era por ele entendida em termos das associações de pensamentos e movimentos corporais com os fluxos dos espíritos animais. Ele assumia que a Natureza determinava essas associações, mas que podíamos até certo ponto alterá-las "por hábito" (§ 50). Lembra, por comparação, que mesmo os animais podem ter suas reações naturais parcialmente alteradas por condicionamento (como diríamos hoje). O cão, que por uma disposição natural é levado a correr na direção da perdiz para apanhá-la, pode ser treinado para deter-se quando a vê, esperando pelo caçador. E conclui (§ 50):
Ora, essas coisas são úteis de saber para nos encorajar a aprender a regrar nossas paixões. Pois dado que se pode, com um pouco de engenho, mudar os movimentos do cérebro nos animais desprovidos de razão, é evidente que se pode fazê-lo melhor ainda nos homens, e que mesmo aqueles que possuem as almas mais fracas poderiam adquirir um império bem absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante engenho em domá-las e conduzi-las.
Deve estar claro que o "engenho" ou habilidade a que se refere Descartes é precisamente a aludida técnica de a alma "representar" para si as coisas que tendam a diminuir as paixões que quer combater e a incrementar as que lhes são contrárias. Desse modo, novas associações mentais se estabelecem (para ele seriam associações psico-fisiológicas), e as más paixões se vão amainando, até voltarem à sua condição natural e primitiva, incapaz de produzir males. A cólera, por exemplo, iria se transmudando em mágoa, e esta depois se reduziria à mera desaprovação, ao mero desagrado, natural e decorrente do próprio senso moral, de que não se pode nem deve abdicar.

4. As paixões e a moral

Até aqui tentamos analisar as paixões dos pontos de vista fisiológico, psicológico e anímico. Utilizamos as noções de paixões boas e más, de efeitos bons e maus, de malefícios e benefícios sem questionar a distinção do bem e do mal. É evidente que para aplicarmo-nos ao controle de nossas paixões é preciso antes saber distinguir o bem do mal. Isso cabe à área da filosofia denominada moral ou ética. Descartes e a maior parte dos grandes filósofos atribuíram grande importância ao estudo da moral, procurando determinar o critério do bem e do mal e os fundamentos nos quais se apóie. Não podemos adentrar esse assunto aqui. Iremos nos ater unicamente a alguns aspectos das relações entre as paixões e a moral, tratados em As Paixões da Alma.
No parágrafo 47, Descartes fornece uma explicação para o fenômeno psicológico do conflito entre aquilo que a alma quer e o que sente como paixão.[5] Não se trata, diz Descartes, de um combate entre a "parte inferior" e a "parte superior" da alma, conforme se costuma imaginar. A alma é una, não se concebe que tenha partes. A explicação do fato liga-se àquilo que, em adaptação da terminologia cartesiana, vimos denominando automatismo das paixões. Não desceremos aos detalhes dessa complexa explicação. Notemos apenas que é fácil entender o referido conflito quando se nota que a alma responde às situações, no nível das paixões, segundo reflexos parcialmente incondicionados e parcialmente condicionados, conforme vimos anteriormente. No plano intelectual e moral, porém, essas mesmas situações passam por exames via de regra conscientes e deliberados, podendo daí resultar serem apreendidas de modo diverso. Quando tratamos do controle das paixões estava implícito esse descompasso entre senso moral e paixões, pois o controle só é percebido como necessário quando as paixões não se harmonizam com aquilo que se julga ser correto ou bom.
O parágrafo 48 aborda a questão do esforço que a alma faz para superar esse conflito íntimo. Inspecionemos na íntegra esse interessante parágrafo (os destaques são nossos):
Ora, é pelo desfecho desses combates que cada qual pode conhecer a força ou a fraqueza de sua alma. Pois aqueles cuja vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer as paixões e sustar os movimentos do corpo que os acompanham têm, sem dúvida, as almas mais fortes. Há, porém, os que não podem comprovar a própria força porque nunca levam a combate sua vontade juntamente com suas próprias armas, mas apenas com as que lhes fornecem algumas paixões para resistir a algumas outras. O que denomino próprias armas da vontade são os juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida. E as almas mais fracas são aquelas cuja vontade não se decide assim a seguir certos juízos, deixando-se arrastar continuamente pelas paixões presentes, que, sendo muitas vezes contrárias umas às outras, puxam-na sucessivamente cada uma para o seu lado e, fazendo-a combater contra si mesma, colocam-na no estado mais deplorável possível. Assim, por exemplo, quando o medo representa a morte como um extremo mal, que só pode ser evitado pela fuga [do perigo], e a ambição, de outro lado, representa a infâmia dessa fuga como um mal pior que a morte, essas duas paixões agitam diversamente a vontade, que, obedecendo ora a uma, ora a outra, se opõe continuamente a si própria, tornando assim a alma escrava e infeliz.
A "força" da alma é definida com referência à sua vontade. As pessoas de vontade fraca deixam-se simplesmente levar pelas paixões, tão amiúde contrárias umas às outras, do que resulta o mais deplorável estado de alma. No entanto, só a vontade forte não basta; é necessária a utilização das "armas" da vontade, que são "juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal". Ou seja, a alma precisa saber distinguir de forma segura o bem do mal. Tem de possuir critérios morais sólidos, caso contrário poderá aplicar sua vontade sobre alvos errados, dando combate a paixões boas ou cultivando paixões más, como acontece, por exemplo, com quem alega que a humildade não se coaduna com a dignidade humana, ou que o ciúme é necessário ao amor.
No parágrafo seguinte (49), Descartes observa que "há pouquíssimos homens tão fracos e irresolutos que nada queiram senão o que suas paixões lhes ditam". Isso, porém, não é tudo:
Há, entretanto, grande diferença entre as resoluções que procedem de alguma falsa opinião e as que se apóiam tão-somente no conhecimento da verdade, visto que se seguirmos estas últimas estaremos certos de não ter jamais do que nos lamentar nem arrepender, ao passo que o teremos sempre, se seguirmos as primeiras, quando lhes descobrimos o erro.
O conhecimento moral é, pois, de capital importância para que a alma alcance o equilíbrio interior, pela indispensável iluminação do processo de controle das paixões. E nesse particular o Espiritismo tem contribuições de alta relevância para fazer. De modo pioneiro na história do pensamento, forneceu à moral um embasamento seguro e objetivo, a partir da análise racional dos fatos da vida humana, vistos de uma perspectiva muito ampliada e detalhada com relação àquelas do materialismo ou das religiões dogmáticas. À luz do conhecimento espírita, o critério do bem e do mal, do certo e do errado, dos deveres e direitos, não é mais uma questão de gosto, de prescrições, de cultura ou de época, nem se funda "em algumas paixões pelas quais a vontade se deixou anteriormente vencer ou seduzir" (ibid., § 49). Resulta, antes, do exame objetivo das conseqüências de nossas ações, com vistas à aproximação gradual da felicidade.[6]
Para exemplificar o raciocínio, consideremos as paixões do amor e do ódio, da humildade e do orgulho, da piedade e da dureza, da esperança e do desespero, da coragem e do medo. Se perguntarmos quais delas devem ser cultivadas e quais reprimidas, a resposta pressuporá um certo critério moral. Evidentemente existe na humanidade terrena, em seu presente estado evolutivo, uma multiplicidade de critérios morais, capazes de levar a diferentes classificações das paixões enumeradas. Há quem julgue, por exemplo, que a humildade rebaixa a criatura; que a piedade é apanágio das almas frágeis; que a desesperança é a postura correta diante da triste situação do mundo e da natureza humana...
Com sua ética objetiva, o Espiritismo pode pôr termo a tais disparidades de opinião, indicando claramente quais as paixões e atitudes que melhor conduzem o homem à almejada felicidade, concebida em termos amplos e perenes. Na lista que demos, por exemplo, são as primeiras paixões de cada par, nunca as segundas, aquelas que devemos permitir que vicejem em nossas almas.
Ao mesmo tempo em que nos esclarece acerca do bem e do mal, o Espiritismo fornece os meios para podermos executar o controle das "más inclinações", ao longo das linhas sugeridas por Descartes. Na seção anterior, exemplificamos esse processo no caso da mágoa. Procedendo de modo semelhante com as demais paixões, elas serão reconduzidas ao seu estado de pureza original, conforme se expressa nas questões 907 e 908 de O Livro dos Espíritos. Nos judiciosos comentários que as seguem, Kardec afirma que as paixões "são alavancas que decuplicam as forças do homem e o auxiliam na execução dos desígnios da Providência". A finalidade boa das paixões é destacada em termos equivalentes por Descartes no parágrafo 52 de As Paixões da Alma: "o emprego de todas as paixões consiste apenas no fato de disporem a alma a querer coisas que a Natureza dita serem úteis a nós, e a persistir nessa vontade, assim como a mesma agitação dos espíritos [animais] que costuma causá-las dispõe o corpo aos movimentos que servem à execução dessas coisas". (Ver também os parágrafos 137 e 138.)
Detenhamo-nos ainda um pouco sobre esse tópico. À primeira vista, é fácil reconhecer que o amor, a coragem e alegria, por exemplo, provêm de princípios bons e concorrem para o nosso bem. No entanto, mesmo essas paixões boas podem ser mal conduzidas e desvirtuadas, levando, respectivamente, ao ciúme, à temeridade e ao estouvamento.
Por outro lado, não é imediata a identificação de origens boas e providenciais das quais paixões como a cólera ou o orgulho possam provir. Descartes, Kardec e os Espíritos que com ele colaboraram nos asseguram que os há, todavia. Ensaiemos uma busca.
A cólera é o sentimento violento de desagrado e revolta que costuma surgir de ofensas físicas ou morais graves, não raro desaguando em ações retaliatórias variadas. Examinando o caso, percebemos que a face moralmente insustentável da cólera é a vingança, bem como o tumulto interior a que arroja. Entretanto, em suas origens podemos localizar algo bom: a desaprovação da agressão. Ora, tal desaprovação deflui naturalmente do senso moral, da faculdade de discernir o certo do errado, de que não podemos abdicar sem retroceder ao estágio da animalidade. O perdão que a ética espírita e cristã recomenda de modo algum significa a aprovação moral das ofensas.
O orgulho, por sua vez, é o sentimento de superioridade em relação aos semelhantes, capaz de induzir-nos a desprezá-los e até mesmo a subjugá-los, quando temos poder para tanto. Embora patentemente injustificável frente ao conhecimento espírita, remontando aos seus princípios talvez possamos identificar algo como a confiança nas próprias potencialidades. Sentimento benéfico, essa auto-confiança é indispensável para que não nos amolentemos, não descreiamos de nosso aprimoramento físico, intelectual, artístico e moral. É somente quando, por excesso, ultrapassa seus limites naturais, que ela se transmuda em orgulho pernicioso.

5. Na direção do Infinito

Não poderíamos concluir este pequeno trabalho sem mencionar que no final da terceira parte de seu livro Descartes apresenta brevemente um outro aspecto das percepções da alma, complementar ao das paixões, tais quais as entendia. Vimos que para ele estas últimas tinham sempre uma "contraparte" orgânica. Sugerimos, por nossa vez, que esse aspecto talvez não seja central nas paixões, que parecem antes ser inerentes à própria alma.
De qualquer modo, dentro do referencial que elaborou, Descartes também notou que há percepções da alma que radicam nela própria, ou, em suas palavras, "emoções interiores que são excitadas na alma apenas pela própria alma" (§ 147; grifamos). Um dos exemplos que dá é a "alegria intelectual" que sentimos quando lemos um romance ou assistimos a uma peça teatral em que as situações excitam em nós diversas paixões, como a alegria, a tristeza, o ódio, o amor, trazendo-nos todas uma espécie de prazer de ordem superior.
Vejamos estas belas passagens do parágrafo 148, em que Descartes desenvolve o tema:
Ora, visto que essas emoções interiores nos tocam mais de perto e têm, por conseguinte, muito mais poder sobre nós do que as paixões que se encontram com elas, e das quais diferem, é certo que, contanto que a alma tenha sempre do que se contentar em seu íntimo, todas as perturbações que vêm de outras partes não dispõem de poder algum para prejudicá-la. Servem, antes, para lhe aumentar a alegria, pelo fato de, vendo que não pode ser por elas ofendido, conhecer com isso a sua própria perfeição. E, para que a nossa alma tenha assim do que estar contente, precisa apenas seguir estritamente a virtude. Pois quem quer que haja vivido de tal maneira que sua consciência não possa censurá-lo de alguma vez ter deixado de fazer todas as coisas que julgou serem as melhores (que é o que chamo aqui seguir a virtude), recebe daí uma satisfação tão poderosa para torná-lo feliz que os mais violentos esforços da paixão nunca têm poder suficiente para perturbar a tranqüilidade de sua alma.
Descartes aponta, assim, uma espécie de sublimação dos sentimentos, na direção da alegria perene e sem mácula que resulta tão-somente da prática da virtude. Essa a alegria que viveremos um dia, quando, pelos nossos esforços, lograrmos alcançar a excelsa condição de Espíritos puros.

Notas

1. Gostaria de agradecer a Márcio Corrêa, Cosme Massi e Matthieu Tubino pelos comentários feitos a versões preliminares deste trabalho.
2. Nesta e demais citações do Livro dos Espíritos utilizamos o texto original, aproveitando em grande parte a tradução de Guillon Ribeiro, publicada pela Federação Espírita Brasileira.
3. Sobre a ciência espírita, ver nossos artigos "O paradigma espírita" e "A excelência metodológica do Espiritismo", bem como as referências neles contidas.
4. Nesta e demais citações desse livro utilizamos o original francês, aproveitando, quando possível, a tradução brasileira indicada na lista bibliográfica.
5. Essa tensão já havia aliás sido comentada, em termos diversos, por Paulo no capítulo 7 da Epístola aos Romanos.
6. Para uma análise sucinta desse ponto ver nosso artigo "Os fundamentos da ética espírita".

Referências

  • CHIBENI, S.S. "Os fundamentos da ética espírita", Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.
  • ----. "A excelência metodológica do Espiritismo", Reformador, novembro de 1988, pp. 328-33, e dezembro de 1988, pp. 373-78.
  • ----. "O paradigma espírita", Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.
  • DESCARTES, R. Les Passions de l'Âme. In: Adam, C. e Tannery, P. (eds.) Oeuvres de Descartes. Tomo XI, pp. 291-497. Paris, Vrin, 1967. (As Paixões da Alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. In: Descartes - Obra Escolhida, pp. 295-404. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973.)
  • KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 64a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
(Artigo publicado em Reformador, abril/1998, pp. 112-15 e 125-7.)